Leia o trecho final do conto “A causa secreta”, de Machado de Assis:
De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco:
– Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.
Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-o na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços.
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram aos borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.
(ASSIS, Machado de. Várias histórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 113-114.)
Com base na leitura do texto integral do conto, é correto afirmar:
Diante da cena em que se revela a relação adúltera entre Maria Luísa e Garcia, Fortunato vinga-se dos amantes por meio da “deliciosa” satisfação em saber que eles nunca mais poderiam estar juntos.
Mesmo não sentindo ciúmes da esposa adúltera, Fortunato é ferido em seus brios de marido traído, o que explica sua reação de satisfação ao ver a esposa morta e o amante e melhor amigo sofrendo pela perda.
A reação de Fortunato, personagem incapaz de sentir ciúmes, é ficar mudo e sem reação emocional frente à suspeita de adultério entre sua esposa e seu melhor amigo, tema caro à obra machadiana.
Fortunato, abatido pela morte da esposa, é surpreendido pela descoberta de que ela e seu melhor amigo, Garcia, eram possivelmente amantes, o que explica a reação inadequada da personagem em um contexto de velório.
Apesar de ele suspeitar de uma relação adúltera da esposa, a satisfação final de Fortunato está relacionada a certo prazer sádico diante do sofrimento alheio que move essa personagem ao longo da narrativa.